Negligência fatal: casos envolvendo o uso de armas da família por menores abrem debate sobre cuidados e riscos
Uma das obrigações previstas no Estatuto do Desarmamento é justamente a de mantê-las fora do alcance de menores

Um menino de 2 anos, acompanhado dos responsáveis, pega a pistola do pai sobre a mesa e dispara fatalmente contra a própria mãe. Um adolescente de 13, contrariado por não poder usar o celular, usa um revólver guardado em casa para abrir fogo contra os avós, matando um deles. Um ano mais velho, e também com uma arma de parentes, outro jovem assassina os pais e o irmão caçula após ser impedido de viajar para encontrar a namorada. Todos esses casos, ocorridos recentemente em diferentes pontos do país, trazem em comum o fato de que envolveram armas legalizadas que acabaram inadvertidamente nas mãos de menores de idade, resultando em tragédias familiares.
A sequência de episódios trouxe à tona discussões que envolvem a posse de armamentos quando se tem filhos pequenos vivendo sob o mesmo teto. Os questionamentos passam pela melhor forma de abordar o assunto com as crianças — é melhor falar abertamente, alertando sobre os riscos, ou omitir a informação? — e pela maneira adequada de guardar esses itens dentro da residência.
— A posse requer, obrigatoriamente, um cofre na residência para guardar a arma — destaca o juiz Daniel Konder, presidente do Fórum Nacional da Justiça Protetiva (Fonajup), elencando outras exigências. — O dono não pode ter antecedentes criminais, precisa fazer um curso de capacitação de tiro para saber manusear a arma e tem de passar por avaliação psicológica.
O magistrado é categórico: não há exceção que permita que crianças ou adolescentes venham a manter qualquer tipo de contato com armas.
— Eles não têm desenvolvimento físico, emocional ou cognitivo para manusear um objeto letal que exige vasto treinamento — pontua.
Perigo na adolescência
Guardar armas em casa, para quem as possui legalmente, é permitido pela legislação. Uma das obrigações previstas no Estatuto do Desarmamento, no entanto, é justamente a de mantê-las fora do alcance de crianças ou adolescentes. Ainda assim, a neuropsicóloga Amanda Bastos orienta que, nessas situações, o mais recomendado é que as explicações e alertas comecem já na idade pré-escolar, de forma lúdica. Uma característica importante a ser considerada, segundo Bastos, é a imaturidade, nessa faixa etária, do córtex pré-frontal — parte do cérebro responsável pela tomada de decisões e pelo raciocínio.
— Elas não têm essas habilidades desenvolvidas e podem se colocar em situações de risco — diz a neuropsicóloga.
O perigo pode ser ainda maior na pré-adolescência e na adolescência. Nessa fase, os jovens podem desenvolver transtornos de humor em decorrência do salto de neurodesenvolvimento e das mudanças hormonais — o que tornaria a arma um facilitador em situações extremas.
— Nesta etapa, também é necessário explicar a diferença entre a arma de fogo real e a da ficção, como as vistas em séries e videogames. Nesses ambientes, principalmente nos jogos, não há morte real: existe a opção de reiniciar, o que não ocorre na vida real — frisa Amanda Bastos.
Já Marina Poniwas, membro do Conselho Federal de Psicologia (CFP) e vice-presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda), lembra que é comum crianças se interessarem por armas ao verem os pais manuseando.
— A melhor instrução é a ausência de armas no ambiente doméstico, a crítica ao discurso de que “segurança se conquista com força” e a promoção de valores de cuidado, empatia e convivência — opina.
Daniel Konder reforça que a maioria das tragédias está diretamente ligada à negligência, e que as crianças são tão vítimas quanto quem se fere com o disparo. Ele enfatiza que, mesmo quando a posse é legal, deve ser tratada como um risco à infância:
— Essas vivências causam traumas profundos e duradouros, que exigem acompanhamento constante para que o menor possa ressignificar esses acontecimentos ao longo da vida.
Do ponto de vista legal, Konder explica que casos como os recentes são tratados de maneira distinta conforme a idade: crianças de até 12 anos incompletos não sofrem sanções, mesmo que pratiquem atos infracionais análogos a crimes. Já adolescentes acima dessa idade podem ser responsabilizados e, nas ocorrências mais graves, submetidos a internação por até três anos.
O juiz ressalta ainda que, dependendo do contexto de negligência, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) prevê medidas como acolhimento temporário ou, em situações extremas, a destituição do poder familiar. Além disso, o mero ato de deixar uma arma acessível a crianças e adolescentes, mesmo que não haja manuseio, já pode gerar uma acusação por omissão de cautela contra o proprietário, com pena de 1 a 2 anos de reclusão, conforme consta no Estatuto do Desarmamento.
— Nesse caso, não precisa haver outro resultado, como um disparo ou ferimento. A simples conduta de deixar a arma acessível à criança, mesmo que ela não seja usada, já configura crime por si só — afirma Gustavo Mesquita, delegado da Polícia Civil de São Paulo.
Se existem vítimas, porém, a responsabilização pode ser mais grave. A depender da situação, o dono da arma pode responder por homicídio culposo (quando não há intenção de matar), com pena de 1 a 3 anos de prisão, ou por lesão corporal culposa, cuja punição varia de 2 meses a 1 ano.
Arsenal ampliado
Dados da última edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública indicam que o país tem cerca de 2 milhões de armas com registros ativos e outro 1,7 milhão com documentação vencida, numa conta que não inclui os arsenais das Forças Armadas e de segurança. Já o Instituto Sou da Paz aponta, a partir de informações obtidas junto ao Exército, que há ainda 1,5 milhão de armas em nome de colecionadores, atiradores desportivos e caçadores, os chamados CACs. Desde o início desta semana, essa última categoria passou a ser fiscalizada pela Polícia Federal (PF), que promete mais rigor no controle.
Entre 2019 e 2022, o governo de Jair Bolsonaro (PL) editou mais de 40 decretos que facilitaram o acesso da população a armas. Mesmo após a revogação de grande parte dessas medidas pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), pesquisadores cobram mais políticas públicas voltadas à conscientização.
— O que tem na normativa é suficiente em termos técnicos, mas não há uma fiscalização individual para confirmar se todas as medidas cabíveis estão sendo tomadas. Ao mesmo tempo em que o governo atual retomou vários mecanismos de controle importantes, não fez nenhuma campanha de conscientização sobre custódia e entrega voluntária — reclama Natália Pollachi, diretora de projetos do Instituto Sou da Paz.
Antes de uso restrito das forças de segurança e do Exército, as pistolas 9mm, como a que foi usada pelo menino de 2 anos citado na primeira frase da reportagem, foram autorizadas para uso pessoal no governo Bolsonaro. Desde então, ela passou a ser líder do mercado nacional: são 643 mil, 28% das armas legais do país. Outro impacto importante foi a liberação de fuzis semiautomáticos, utilizados por CACs — já são mais de 40 mil em posse deste grupo.
— O poder de fogo das armas em circulação aumentou muito — resume Roberto Uchôa, conselheiro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Tragédias em sequência
Proibido de usar celular: Em Francisco Beltrão (PR), um menino de 13 anos matou a avó e feriu o avô com um revólver após ser proibido de usar o celular, no último dia de junho. A arma estava registrada no nome de um parente.Pistola sobre a mesa:Também em junho, uma criança de 2 anos pegou a pistola do pai que estava sobre a mesa e acabou atirando contra a mãe em Rio Verde de Mato Grosso (MS). O dono da arma disse que não viu o filho manuseá-la.
Mortes e apreensão: Em Itaperuna (RJ), no dia 21 de junho, um jovem de 14 anos tirou a vida dos pais e do irmão caçula após ser impedido de viajar para encontrar a namorada que conheceu pela internet. Ele usou a arma do pai.
Revólver na escola e prisão: Em agosto do ano passado, a tragédia não aconteceu por pouco, mas o pai de uma menina de 7 anos foi preso depois que ela levou a arma dele para a escola. O caso aconteceu na cidade mineira de Ponte Nova.
(*estagiária sob supervisão de Alfredo Mergulhão)
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